Imagem: PORTINARI
A mesma espécie de sábios que
decretou o fim da História, com o triunfo da globalização neoliberal, decretara
antes o fim das ideologias. A ordem do raciocínio é a mesma: o capitalismo,
premiando os audazes e persistentes, liquidaria as ideologias. Na realidade,
eles pensavam em uma só ideologia, o que é correto, do ponto de vista lógico: o
fim do pensamento de esquerda, com o domínio absoluto da ordem da direita,
contra a “anarquia” libertária, acabaria com os lados ideológicos. Onde predomina o pensamento único — no
caso, o neoliberal — as ideias se encontram castradas, mortas.
Mas a ideologia não é uma
diversão da inteligência. Ela corresponde a interesses humanos bem claros e
definidos. Os homens, mesmo quando
submetidos ao sofrimento mais terrível, não deixam de aspirar à felicidade. O
que difere é o conceito de felicidade de cada um. Para os lúcidos, a
felicidade é altruísta. Assim a sentem, por exemplo, os patriotas, quando seu
país cresce em prosperidade, e todos vivem em paz e têm a mesma oportunidade de
realização.
Não pode haver segurança pessoal
e o conforto que o trabalho permite, enquanto houver crianças famintas e
adolescentes perdidos no turbilhão da miséria, das drogas e do crime. Em uma
sociedade como a que nos cabe, ainda não podemos ser felizes, se não possuirmos
sentimento de pátria. A pátria não é referência geográfica, é uma reunião de
seres humanos que falam a mesma língua e têm projetos comuns. Como resumiu
Renan, a nação é o ato cotidiano de
solidariedade. Os grandes interesses, que manipulam os meios de informação,
para manter os povos submissos, inoculam os vírus da intolerância para com os
diferentes, e pervertem as parcelas mais débeis dos povos, transformando-as em
hordas de predadores e assassinos. Isso ocorre em todos os países do mundo,
porque é inerente ao sistema mundial de domínio.
Submetidas à insânia construída e mantida pelo controle da indústria
cultural, muitas pessoas só se sentem felizes no usufruto da desigualdade e da
injustiça. São aquelas cuja fortuna só lhes serve para a soberba e a
intolerância. Há muitos homens ricos que escapam dessa maldição. Lembro-me de
uma confidência que me fez, quando participávamos da Comissão Arinos, o
industrial Antonio Ermírio de Moraes, cuja posição no grupo de estudos era de
centro-esquerda: ele se sentia tranquilo porque não fazia de sua fortuna uma
ofensa a ninguém. Guardava os seus domingos para servir aos outros, na direção
de um grande hospital, e não os usava para a ostentação e o hedonismo. Ele,
como alguns outros empresários brasileiros, como foi José Alencar, são daqueles
que se orgulham mais do número de empregos que criam do que do conforto e do
poder de que podem desfrutar. Mas há — e não só entre os ricos, mas também
entre os pobres alienados — aqueles que só se sentem felizes diante da
infelicidade alheia. Só são ricos porque vivem em um mundo de pobres. A partir
dessa simplificação, podemos concluir que há, sim, e continuará havendo, duas
ideologias, direita e esquerda, com suas pequenas variantes no espectro
doutrinário.
A extrema-direita só pode
impor-se mediante a fraude e o terror. Ela sempre se valeu da combinação dos
dois expedientes que, na perfeita síntese da Igreja Católica e da reforma dos
tempos inquisitoriais, se fazia mediante o pavor do inferno, reproduzido no
mundo com as torturas, os massacres mútuos de católicos e protestantes, e a
hipocrisia da caridade, a fim de garantir a submissão dos oprimidos, com o uso
alternado da piedade e da forca, como resumiu um conservador lúcido, Bronislaw
Geremek.
Como em todas as grandes mudanças
históricas, aguarda-se a intervenção da inteligência, a fim de conduzir a
revolução que as ruas anunciam, nos países árabes, nas praças espanholas e nos
bairros de Londres — não só os “sujos” de imigrantes negros e morenos, como
Tottenham, mas também em áreas centrais, como a de Oxford City.
A última manifestação de rebeldia
que contou com a presença de grandes intelectuais foi a eclosão da juventude,
em 1968. Os homens que deram o suporte de suas ideias ao movimento, como
Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Max Horkheimer, Jean-Paul Sartre, já não
existem. Os pensadores de hoje parecem
acomodados. Não aparentam dispor da chama interior próxima dos jovens que
queriam amar e expressar seu inconformismo com o mal-estar de um mundo
unidimensional e injusto, como os que se rebelaram em Paris, em maio de
1968 — e, em seguida, no resto do Ocidente.
O tempo está exausto, mas é provável que se canse da própria exaustão,
a fim de, tal como em outras épocas, provocar o fulgor da inteligência e dar a
alguns homens não só ideias fortes mas também o poder de, com elas, convocar a
consciência solidária e essencial dos homens, contra os novos bárbaros.
Mauro
Santayana
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