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O Estado brasileiro veio antes da Nação e talvez este seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre governo e sociedade.
Lemos que o Brasil está crescendo, os miseráveis começando a comer, o ensino se universalizando, o etanol movendo nossos carros, campos e campos de petróleo sendo descobertos. Estará, pois, o Brasil entrando no Primeiro Mundo? O futuro está às nossas portas, finalmente?
Claro, podemos colorir nossa esperança de cores ingênuas e ufanistas, baseando-nos na retomada da nossa tradicional vocação para exportar produtos extrativos ou “de sobremesa”, como pau-brasil, ouro, açúcar, cacau, café, suco de laranja, minério e, dentro de alguns anos, dizem, petróleo. Essas atividades seriam, para alguns, suficientes para darmos o grande salto e transformar esta terra na primeira potência tropical.
Penso em grandes produtores de petróleo como a Nigéria, a Arábia Saudita, o Irã, a Venezuela e, mesmo com lentes de aumento, não consigo visualizar nenhuma potência de Primeiro Mundo entre eles; por outro lado, sabemos do alto índice de desenvolvimento do Japão, ilha inóspita incrustada no Pacífico, e do crescimento vertiginoso em países ainda há pouco insuspeitados como a Coréia, politicamente dividida e sem grandes presentes da natureza.
Não posso deixar de lembrar que no início do século XVI Portugal parecia ser uma potência inalcançável: estrategicamente localizada, possuía uma frota moderna, dinheiro para contratar excelentes homens do mar italianos, uma burguesia comercial em ponto de bala e até um sistema financeiro bastante desenvolvido para a época, além de terras na África, na Índia e na América.
O uso da Inquisição, a serviço do rei e da nobreza, para esmagar os mercadores (como ensina Antonio José Saraiva em Inquisição e Cristãos Novos), a corrupção na venda dos direitos de comando das embarcações e a burocratização e centralização administrativas – que tolhiam a iniciativa dos empreendedores mais corajosos – conseguiram impedir o desenvolvimento das forças produtivas e condenar o país a uma pasmaceira que o acompanhou por séculos.
De fato, há uma conjunção de fatores econômicos favoráveis a que o Brasil chegue a uma mudança histórica e todos nós torcemos para que isso aconteça. Mas parece claro que eles não são suficientes para já nos sentirmos como membros de um eventual G-9. Para isso ainda falta muito.
“Onde foi que nós erramos?” é a famosa pergunta feita pelos pais quando o filho se desvia do que eles consideram o “bom caminho”. Da mesma forma, os “explicadores” do Brasil vêm tentando, sem muito sucesso, encontrar as razões que impedem nosso país de deslanchar e o mantêm pobre e desigual, distante do ideal que para ele traçamos, como se ele fosse apenas uma promessa permanente, um eterno devir.
Não que não haja explicações, apenas elas não são convincentes. E ficamos sem entender como é que um povo que consideramos tão esperto e cordial, vivendo numa terra que achamos tão generosa, não chegou ainda ao tão ansiado Primeiro Mundo.
O país que não assumimos
Por meio de uma ginástica mental bastante complexa, tentamos nos situar no Primeiro Mundo como pessoa física, embora a entidade nacional e o solo em que pisamos ainda estejam patinando no Terceiro. Por mais que isso fira a lógica, fazemos parte de uma nação sem a ela pertencer, não assumimos ônus e responsabilidade da cidadania, sob o pretexto de não ter sido consultados pela nação que escolheu “esse povinho” que está aí. Isso nos exime da responsabilidade sobre os desmandos dos governantes, a inoperância da polícia, os sistemas previdenciários, de e da educação e o transporte coletivo.
Reclamamos contra as ruas inundadas durante as chuvas, mas cimentamos todo o nosso terreno e construímos o dobro da planta aprovada na prefeitura. Declaramo-nos chocados com a violência no trânsito, mas transformamos as ruas (incluindo as faixas de pedestres) em espaço de competição.
Somos esquizofrênicos sociais, divididos em nossa auto-imagem generosa e primeiro-mundista e nossa prática egoísta e autoritária. Enquanto nosso espelho nos mostra bons e cordiais, nosso comportamento nos revela preconceituosos e agressivos.
Como se fôssemos estudantes preguiçosos, não assumimos a responsabilidade de nossas ações e atribuímos aos outros a culpa pelo nosso fracasso. Se não tivéssemos sido objeto do saque colonial... Se o clima fosse mais frio, nossas avós fariam conservas, o que aumentaria o valor agregado de nossos produtos agrícolas, já que exportaríamos doce de graviola e goiaba, e não a fruta a granel... Se, se, se.
A verdade é que não assumimos ainda os encargos devidos por quem pertence a uma sociedade complexa, baseada em contratos sociais que só funcionam se forem cumpridos por todos, o que inclui, é claro, a já citada responsabilidade social, produto escasso por estas bandas.
O fato de o Estado ter precedido a Nação no Brasil talvez seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre governo e sociedade, mas o reconhecimento desse “pecado original” não nos exime de uma prática social adequada aos objetivos que alegamos desejar ao nosso país.
E aqui recorro novamente à História para buscar um caminho. Fomos o último país ocidental a eliminar a instituição da escravidão. Muita tinta foi gasta para entender o motivo de isto ter ocorrido (interesses do latifúndio, pressão dos comerciantes de escravos etc.) e, agora, há certo consenso entre os historiadores. A escravidão não acabou antes porque grande parte da população brasileira – e aqui não estou falando apenas dos grandes proprietários rurais – não queria. E ela não queria que isso acontecesse porque a escravidão era confortável, as pessoas estavam acostumadas com o escravo de ganho, o auxiliar doméstico, a escrava sexual.
Presente de mudanças
Esse processo pode voltar a acontecer? Não seria muito confortável para muita gente continuar a viver num país de Terceiro Mundo, desde que seja no topo da escala social? Nesse caso o petróleo abundante nos deixaria mais perto de nos tornarmos uma Suécia ou uma Arábia Saudita? Meu ponto é que conjuntura favorável sem vontade política não muda a História.
Queremos, de fato, educação, saúde, justiça e segurança para todos? Será que a escolarização pública fornecida aos jovens é igual àquela que atingia a classe média há poucas décadas? Minha geração no “Estadão”, o Colégio do Estado, em Sorocaba (como tantos outros pelo Brasil), ajudou a formar prefeitos, juízes, promotores, pesquisadores, jornalistas, poetas. Ainda estudantes, no interior de São Paulo, fundamos dois jornais, União & Cultura e Luta Estudantil, onde escrevíamos nossas idéias. Com raras exceções, os jovens que terminam o Ensino Médio de hoje, na escola pública, mal conseguem preencher uma ficha de visitantes na entrada do prédio em que trabalham como porteiros. O ensino que o Estado fornece hoje se contenta em formar apenas esse tipo de força de trabalho?
A minha pergunta é: nós queremos, de fato, mudar? Se quiséssemos mudar a educação, teríamos uma preocupação bem maior com a formação continuada dos professores, assim como de suas condições de trabalho e auto-estima. Não nos contentaríamos apenas em promover uma distribuição de livros didáticos e dar nossa tarefa por concluída.
O Brasil tem futuro? Tem, sim, e é o futuro que decidirmos dar a ele. Sem determinismos geográficos ou econômicos. Sonhar grande é bom, mas insuficiente. Há que construir esse sonho, pedra a pedra. Mais difícil do que extrair petróleo e gás do fundo do mar será construir uma nação mais justa, sem o populismo que tem servido para escamotear as desigualdades, por meio de esmolas concedidas pelo poder. Cabe a nós decidir se queremos nos lançar a essa empreitada.
Jaime Pinsky, historiador e editor
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